Por Alberto Jorge*
Há cem anos, em 1923, um samba entrou para a história. Composto por Francisco A. Santos e interpretação de Bahiano, trazia como primeira estrofe e refrão a seguinte letra:
“Eu sou filho de baiana
Fui criado no samba
Meu pai é o candomblé
Minha tia é a moamba”
“Fala meu louro
Emissário do diabo
Deixa a vida alheia
Macaco, olha teu rabo”
Foi um sucesso total dentro e fora do Carnaval.
Passados cem anos, me deparo com uma realidade que me remete à letra do centenário samba.
Os ataques de saracuticos histéricos, resultados de fezes (plural de fé) duvidosas de católicos e evangélicos neopentecostais, xiitas, se deram por conta da fantasia da Sabrina Sato, e do “excesso” de “macumba” e “satanismo” no desfile da avenida Marquês de Sapucaí, com destaque especial pra Escola de Samba do Salgueiro, repleto de demônios e figuras das “trevas”.
De pronto lembrei do samba que, na década de 60, durante minha infância, ainda fazia muito sucesso.
Mas até onde essa histeria fruto das fezes (plural de fé) pode ser entendida como sinônimo de santidade?
Um dia, indagado sobre o Carnaval, Dom Helder Câmara, que foi Arcebispo de Recife e Olinda, respondeu:
“Carnaval é a alegria popular. Direi mesmo, uma das raras alegrias que ainda sobram para a minha gente querida. Peca-se muito no carnaval? Não sei o que pesa mais diante de Deus: se excessos, aqui e ali, cometidos por foliões, ou farisaísmo e falta de caridade por parte de quem se julga melhor e mais santo por não brincar o carnaval”.
Não é nenhuma novidade que o fundamentalismo religioso conservador seja católico romano, ortodoxo ou evangélico neopentecostal, se espalhou pelo Brasil como se fosse uma praga.
Se tal prática se limitasse aos quintais paroquianos, tudo bem! Mas…. a síndrome do rabo do macaco está ficando cada vez pior.
Vamos aos fatos:
A Sabrina Sato está sendo “detonada” só porque se fantasiou na cor vermelha e se fez fotografar com uma animação de dragão (SIC). Já há pastores, padres e fiéis querendo exorciza-la via Live na Internet.
Evidentemente que em tal transmissão, os “santos” varões não deixarão de pedir aos fiéis a famosa doação. O vil metal, também conhecido na idade média como stercore diaboli (esterco do diabo) continua sendo o elemento presente, imprescindível e precioso nos cultos e celebrações desses devotados fiscais da vida alheia. Com a Salgueiro não é diferente; a Escola de Samba já esta sendo considerada a morada de Satanás.
‘Meditabundo’, me pergunto: se essa gente que se considera pura, que não gosta de Carnaval, e o consideram pecaminoso, devasso, concupiscente, indecoroso e satânico, o que um homem, uma mulher de Deus, fazem olhando fotos e vídeos daqueles e daquelas que só querem se divertir na festa que, segundo a opinião de vários historiadores, existe há mais de três mil anos, e que se iniciou como culto ao Deus Baco (para os romanos), e Dionísio (para os gregos)?
A resposta que se me apresenta está na letra do samba centenário, “macaco olha teu rabo, deixa o rabo do vizinho!”.
Deixo aqui uma pequena sugestão de reflexão: não está na hora de fazer valer a máxima popular: cada macaco no seu galho?
A mistura entre o samba, o Carnaval, as Escolas de Samba e os Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana, (Macumba), vem de priscas eras, há sim uma belíssima fusão cultural. Tal qual o acarajé de Jesus, não há como “engolir” Carnaval Gospel, Maracatu de Jesus, nem samba de enredo neopentecostal. Que cada um se limite ao seu quadrado.
Não há mais que se ter tolerância com os excessos tradicionalistas e fundamentalistas.
O respeito à Diversidade não é mais uma questão do querer individual, é Lei! Se é Lei, cumpra-se e deixa a Sabrina Sato em paz, deixa quem gosta de Carnaval viver como quiser!
O julgamento final, se é que este existe, será feito por Aquele que sabe o que se passa no íntimo de nossos corações.
Assim sendo: Salve o Sacrossanto Carnaval com seus anjos e demônios!
As informações neste artigo são de responsabilidade do autor.
(*) Alberto Jorge – Xɛ́byosɔnɔ̀n Alberto Jorge Silva Ọba Méjì
Nascido em 26 de Abril de 1960 em Manaus, AM;
Dotɛ́ do Xwɛgbɛ́ Xwɛgbɛ́ Acɛ́ Mina Gɛgi Fɔn Vodún Xɛ́byosɔ Toy Gbadɛ́
Coordenador Geral da Articulação Amazônica dos Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana – ARATRAMA
Fundador e Mantenedor da Associação de Desenvolvimento Sócio Cultural Toy Badé
Formação – Com formação em Filosofia e Teologia pelo Centro de Estudos do Comportamento Humano – CENESCH; Radialista; Psicólogo Clínico Especialista; Doutorando em Psicologia Evolutiva e da Educação.
É Conselheiro Titular do Conselho Estadual de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais do Amazonas; Conselheiro Titular do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Amazonas; Ex Conselheiro Estadual de Saúde do Amazonas; Ex Conselheiro Municipal de Saúde de Manaus;
Membro do Comitê de Saúde LGBT do Amazonas; pesquisador da Étnocultura dos Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana; militante há 35 anos nos Movimentos de Negritude, dos Povos Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana, de Defesa, Conservação e Preservação do Meio Ambiente; e de Direitos Humanos.